sábado, 23 de outubro de 2010

Família de 31 membros sobrevive das Grutas na margem do Parque Nacional da Gorongosa


 I Livro

Para as Misteriosas Grutas de Khodzué !


Capítulo 1
Da Pista de Chitengo

Um sol velho e teimoso, próprio da zona tropical, visitara logo pela manhã a pista de Chitengo espalhando seus raios até aos segredos profundos da selva. Eram raios já comprometidos pelo vizinho inverno. Sentia-se, na pele, o regresso do seu vigor, incapaz de penetrar na pele de um recém-nascido e fazer escorregar daí algum suor, sol aturável com menos esforço. O tempo comanda em tudo. Até aos astros celestes como o sol. Este deixara de ser aquele de Dezembro e Janeiro, que maltratava tudo ao seu alcance, secava imediatamente o matope (lama) depois de cair alguma chuva. O sol já mudara completamente. Começava a olhar para os seus intervenientes na busca de uma amizade atrasada, arrependida. E os saudava. Era outro sol, envelhecido de stress e experiências, desidratado. Tão velho que nem a pássaros assustava. Perto das dez horas, ainda se ouviam pássaros a chilrear pelos enormes ramos de árvores, à entrada da pista do Parque Nacional da Gorongosa (PNG). Era antes de buscarem por alguma rendição nos seus ninhos, debaixo de sombras. Mesmo um camaleão verde escuro atravessa, à vontade, a picada que conduz ao tando demonstrando o máximo do seu estilo clássico.
            Sabíamos o que nos interessava. Não era o vigor como tal, mas o bem que nos daria. Dispensámos os casacos.

De acordo com as seguintes características:
Coordenadas: 18 59 S : 34 21 E; Altitude: 104 Ft; Direcção da pista: 05/23; Medidas: 1100x45 M; Natureza dos solos: argila; Classe : Pista 2A; Resistência 12.5 Ton; Critical Airplane: Lear JET 24D; com predominância de ventos do quadrante sueste;

            Esta Pista de Chitengo é usável somente durante a estação seca, e só durante o dia. Ela tem conhecido considerável tráfico quando se abre a época turística. Um exemplo dos táxis aéreos mais frequentes nesta pista se pode ver abaixo:
Pista de aterragem de aviões e helicópteros no acampamento de Chitengo. Foto por DJMuala.

O grupo de aventureiros era composto por Greg Carr, seu irmão Ken e seu sobrinho, senhora Peggy Rockefeller, Tato Alexandre e claro, o autor destas linhas.
Ao descolar, Greg Carr pediu ao piloto que sobrevoasse a zona norte do Parque de modo a vermos alguns elefantes.
Helicóptero do dia que desprezou a distância para as Grutas de Codzo.

 A expectativa entre os viajantes era enorme. Confesso não ter visto elefante nenhum. É que o helicóptero andava de pressa numa via campestre sem tráfico, nem de bicicletas. Foi tão depressa que não me deu tempo de escrutinar, na mata cerrada que desfilava para trás, o fanático das acácias amarelas. E ninguém do grupo também conseguiu ver um. Correr por vezes não é a regra para concretizar todas as metas, escaparam-nos elementos essenciais da excursão – elefantes. Outras tantas espécies, essas sim, qualquer um as viu mesmo na velocidade impossível do engenho voador.

Tato Alexandre era o mais emocionado. A que se devia tanta emoção?, questionei-me.
Talvez porque era a primeira vez que se sentava ao lado do patrão e com ele conversava sem formalidades; ou por nunca ter viajado de helicóptero, este engenho rapidíssimo à semelhança das mudanças actuais. Num abrir e fechar de olhos é o lago Urema que ficou por trás, uma imbabala solitária ou uma manada de pivas por entre árvores também em corrida oposta a nossa. Rios pareciam cobras coloridas, também as picadas. Outro abrir e fechar, já se estava por cima das falésias calcárias. 
            Provavelmente porque desceria deste meio moderno na sua terra natal, no meio de uma pompa familiar em plena Páscoa particular. Quem nunca sonhou voar. Mesmo em criança, a sensação de movimento sobre a superfície terrestre é muito forte. Pedaços de madeira, caixas de fósforos vazias, pedras e outras peças arrastadas no chão representam carros que já na criancice complementam o sentido de movimento que caracteriza a dinâmica da vida. Vir a subir num helicóptero deixaria de ser um sonho materializado?
Mapa cedido pelo PNG.

Questionava-me na tentativa de entender o que se passava com Tato Alexandre. Talvez porque depois de muito tempo de ausência, ia ao seu ambiente familiar. Ou porque o cheiro dentro do engenho era dos mais frescos.

Também tive razões para me emocionar com a viagem. Embora é mais fácil apontar do que se apontar. Viajava pela primeira vez com o Sr. Greg Carr no helicóptero do Parque e com ilustres figuras; a grandeza, o verde e a imensa floresta do Parque encontraram-me, apesar de ser necessário aumentar o número de animais. Contudo, era na emoção de Tato que eu controlava a minha e alimentava, assim, a minha imaginação. Mesmo pela regra, é de uns que os outros se distinguem?






Capítulo 2
Lago Urema! Um visual único

Ocupando uma área de cerca de 20 Km2, todo emerso num azul muito carregado, o lago Urema produz efeitos que diversificam a vegetação ao longo da sua bacia magnetizando uma variadíssima diversidade animal. Artrópodes, aves, crustáceos, insectos, peixes, anfíbios, répteis, vertebrados diversos que se encontra no lago, nas suas margens e bacia, desenvolvendo-se ai uma autêntica rede de cadeia alimentar.
Um rápido estremecer do helicóptero por cima do lago, proporcionou um olhar de Deus e perceber a beleza naturalmente projectada num azul com ciladas de uma verdura dentuça e revoltada.

Capítulo 3
Casamento de relevos

Obrigados a abandonar a praia do Urema, entrámos nas ondas falhadas. As da junção do garben do Urema com o prolongamento cársico do Planalto de Cheringoma. Zonas gradualmente altas, com acidentes rochosos, grutas várias, cursos de água, vegetação específica e pássaros, quebram a rotina dos safaris de animais. Esta é uma das mil paisagens diferentes dentro do lendário PNG que cria outra emoção no espírito humano. Cortes rochosos que, rimados com o brilho do sol poente a incidir neles, trazem à mente, antes das grutas, um dos mais nobres safaris que um aventureiro já teve. A astronomia é bastante compreensível. Parta de voo.
Tenha a soberba oportunidade de contemplar tantas espécies de animais a ceifarem constantemente o que a natureza preparou para a sobrevivência de irracionais. Depois, lembre-se do Urema e da utilidade da sua existência vendo a dinâmica, pelo menos, nas suas margens: uma autêntica indústria sem motores.
Ainda na mesma viagem, seguem-se as ondas rochosas e a sua racionalidade na condução sábia  de recursos hídricos. Certamente poderá sentir-se tentado a aterrar por cima de uma das várias rochas espaçosas e acreditar que vale a pena uma fotografia do local. Aliás, porte sempre uma máquina para oportunidades escassas e talvez únicas. Tão únicas como um banho num curso de natural de água. Ainda não terá chegado as Grutas de Codzo.

Capítulo 4
Habitações dentro do Parque?

Vi habitações dentro do Parque. Claro em condições vulneráveis a ataques de animais selvagens. De quem são aquelas habitações dentro do Parque? Foi a primeira pergunta tão séria que atrevi perguntar ao Greg Carr. Greg era o único na aventura que podia esclarecer-me. Os outros eram hóspedes, excepto Tato. Então o homem é capaz de viver onde a sua consciência lhe manda? Chega a ser escravo da sua própria consciência? Ora se representa em igrejas, parlamentos, em associativismos vários, enquanto está presente e contactável democraticamente. Ora se escondem em ambientes de selva. O conceito de selvagem está ligado ao lugar físico ou ao comportamento? E quando entende, o homem atura viver em cidades bastante perigosas como Joanesburgo com um índice elevado de criminalidade ou no Vaticano com altos níveis de santidade!

O homem é mesmo grande! Escravo da sua coragem e determinação! Só fracassa quando admite pensamentos contrários. Ou quando é manipulado porque não entende com clareza a verdadeira intenção por detrás da decisão. Porque é que aquelas pessoas insistem em viver no meio da selva, de animais, em pleno coração do Parque? Qual das seguintes hipóteses justificaria a permanência daquelas pessoas no Parque?

a)                  Proteger os animais.
b)                 Falta de um outro sítio para estabelecerem suas habitações.
c)                  Força do hábito e tradição.

Acho que insistem em viver dentro do Parque porque estão conscientes do que fazem! Quem nunca precisou de apoios? Pensamentos insistentes dão a coragem, protecção, renitência, etc, ...
Acredito também e sem reservas que as comunidades têm medo de mudar de habitat costumeiro. É comum, nos pensamentos fortes e fracos simultaneamente, ter-se medo de mudanças. As mudanças, pequenas ou grandes, são difíceis de gerir e criam insegurança e conflitos. Muitos indivíduos, grupos ou comunidades que abraçam conscientemente a mudança, têm experimentado grandes avanços. Acontecerá o mesmo com as comunidades que habitam no Parque?

Capítulo 5
Helicóptero por cima de uma policultura

Antes de chegarmos às Grutas, parámos na machamba da família de Tato. Milho, mapira, aboboreiras, feijões (nhemba e bóer) entre outras culturas rastejantes e trepadeiras, etc, se podiam ver nesta pista habitual de enxadas e, na circunstância, visitada pelo helicóptero. Culturas raquíticas.
Os solos cársicos próximos das Grutas, mal drenados na sua superfície e carentes de água, são pouco propícios para o desenvolvimento saudável de muitas culturas agrícolas. A compacticidade destes solos só clama por estradas e pistas de aterragem. São solos encorajadores para o desenvolvimento daquilo que se deveria considerar base económica das pequenas comunidades à volta das tantas Grutas: o desenvolvimento sustentável do eco-turismo e turismo cultural. Enquanto se espera por este raciocínio por parte de quem é de direito em decidir nisso, aterrámos numa machamba contendo culturas raquíticas de milho e mapira em pleno Março. Noutras partes, na Gorongosa por exemplo, em Março é quase tudo mato de milho, mapira, verduras, feijões, e outras plantas. A maçaroca, por exemplo, começa a ser vendida nos mercado e tchungamoios (mercados informais a beira da estrada e picadas) antes de 15 de Fevereiro.

Capítulo 6
Codzo e o calor humano

Uma dúzia e meia de membros da mesma família, cuja a maioria era de crianças, correu para a machamba de policultura. Uma grande emoção escapava à contenção natural na face dos dois grupos.
Os nativos tinham tanta explicação. Helicóptero na sua família, do qual e surpreendentemente, desceu seu filho, Tato, rodeado de brancos. Embora aterrámos numa machamba, Tato não vinha ai como contratado para as plantações. Nem o tumulto que correu para a pista (a machamba) era de escravos já nas plantações. A corrida para o campo não era para receber mais captivos (Tato e eu). Era, sim, uma aterragem triunfal de Tato em visita da sua saudosa família. E a contradição estava patente, evidente. Os brancos que lhes trouxeram Tato eram todos alegres, sorridentes. Sentia-se orgulhosos em terem trazido alguém cuja família ansiava por ver. Ao invés de trazerem Tato amarado, acompanhado de palmatórias, chicotes, armas, trouxeram carinho, esperança, fotos, dinheiro, alimentos, refrescos, etc, para a família servir-se depois da cerimónia nas Grutas!
Na mente da família local, o orgulho aumentou-se rimado com a cultura moderna ai pavimentada pelo helicóptero. As outras famílias mais próximas viram o helicóptero aterrar naquela casa. As famílias longínquas viram o engenho voador passar e ouviram o som de aterragem e posteriormente o da descolagem. Que orgulho desta família? Qual merecimento? Que subida? Qual inveja a crescer nas outras famílias de Codzo? Quem não quer ver um helicóptero aterrar no seu quintal aqui no interior de Sofala? As reacções de massa tornam-se mais candentes no último capítulo desta obra.
Muitos dos visitantes ficaram mais maravilhados com a cultura folclore do que Tato e eu. O tumulto de toda a família presente no dia a cercar pacificamente o helicóptero e os visitantes, comovidos por alegria. Trajados de roupa simples, de cores originais difíceis de reconhecer pela poeira, nódoas e uma higiene própria de quem está em casa, à vontade. Aqui o vestuário é muito, mas muito categorizada. Há roupa sempre guardada, só usada quando se vai aos locais públicos como à vila, igreja, nas campanhas, reunião grande e às vezes nos falecimentos. E há a roupa caseira, antiga, com alguns rasgos aturáveis, mais relaxada, menos limpa e também chinelos. Os rasgos no vestuário caseiro não fazem diferença em casa. Só o pai e a mãe é são sexuais e andam durante o dia distraídos na luta pela economia. O outros membros da família são assexuais por força da cultura universal. Poucos tinham chinelos. Tal aspecto folclore, muitas vezes aldrabador, interessou aos estrangeiros.
Estou habituado a maneira de ser folclore, que me viu nascer, e incutiu-me sua consciência enquanto fui crescendo. A cidade só conheceu-me quando o campo já não tinha os níveis violentos do alfabeto formal descido do Norte, de Cima, de Onde Deus e a Luz estão, para o Sul. Para o Sul da África, o Sul de Moçambique (Zambézia e Sofala). O Norte é mais desenvolvido, a cidade, a modernidade, a central de tudo que o Sul deve decalcar, plagiar, se buscar emancipação e crédito.
Alguns nativos conseguiam controlar-se. Greg exibiu umas fotos que a equipa de National Geographic tirou nas Grutas com alguns membros da família de Tato. Numa das fotos estão os irmãos Jeremias, Luís e Baptista.
Da esq. para direit estão Jeremias, Greg, James Byrne, Bob Poole, Luís, Baptista e a frente esta um filho de Luís.

Capítulo 7
Já não se lava a única camisa de noite

Jeremias foi o primeiro a chegar à pista (machamba). Ao percorrer o campo agrícola encontrámos Luís semi-nu, num riacho bem perto, onde provavelmente estivera para tomar banho. As suas calças estavam no chão. Será que estava para lavar as calças e aguardar ai até se enxugarem ao sol?
Na era actual, muitos conseguem ter duas ou três peças de vestuário. Já não se possui uma única peça. O segredo de lavar a única peça de vestuário (camisa, calças, calções, sapatilhas, etc) de noite para se usar de novo no dia seguinte está ficando ultrapassado. Mesmo durante o dia e nos cursos de água, o hábito de se aguardar até que a roupa se enxugue ao sol vai passando. Este só se reviveu pela gente que esteve em áreas de domínio durante a guerra civil. Os fardos de roupa de segunda mão e outros produtos que a comunidade local não produz como sal, óleo, açúcar, etc, só se encontravam nas zonas urbanas onde a Frelimo sempre esteve. Agora a roupa de segunda mão chega em todos os cantos e já se pode obter mais peças de vestuário.
 E se fosse o caso de Luís, então seria de noite. Só as capulanas (mukumis) constituiam excepção. Lavavam durante o dia. A dona aguardava na água tapando seu sexo com danda (um farrapo que escondia os órgãos sexuais). Ficava ai até a capulana se enxugar ao sol e para depois vesti-la e voltar para casa. Razão pela qual, ao se aproximar de uma travessia de riacho qualquer os homens devem por hábito parar primeiro a uns metros antes do lugar e gritar pedindo licença. A expressão mais conhecida é pá gombe, pá gombe cujo significado pragmático equivale a pedir licença para passar daquele sítio onde pode estar uma ou tantas mulheres meio nuas a espera da roupa se enxugar, lavar ou tomar banho. É que a mesma capulana servia de cobertor do casal durante as noites, daí ter de se lavar durante o dia. Certamente não era o caso de Luís naquele riacho.
É hábito das pessoas que vivem em zonas interiores tomar banho em riachos. Aliás, as suas habitações são geralmente construídas perto dos cursos naturais de água. Um hábito enraizado no primitivismo e cimentando no cerne folclore. A falta de recipientes seguros onde se guardasse a água suficiente para o uso doméstico fez com que o homem primitivo não se separasse das fontes do líquido vital por aqui. E em Codzo, os pequenos aglomerados familiares estão mesmo espalhados ao longo dos cursos de água pós ainda não existe nenhuma fontenária, furo ou poço com água potável. Toda a água necessária se retira dos cursos naturais de água mais próximos. As casas de banho são pouco existentes, como tal, porque muitos tomam banho nos cursos naturais de água. Então Luís esteve quase nu ai juntinho a um desses cursos de água.
Conversámos com ele, o Luís. Estava muito atrapalhado. Tato teve que lhe pedir para usar as calças, porque estava connosco a D. Peggy Rockefeller, uma mulher de renome e importância indiscutível no mundo da economia, para além dos homens. Uma atrapalhice justificável. Certamente ele ouvira o som do helicóptero. Antes, não esperava que vinha para sua zona, família. Depois, que aterraria juntinho a esquina onde ele esteve.
O engenho é rápido, nasceu assim mesmo e pára onde o piloto achar conveniente. Luís ficou extasiado a contemplar o inesperado. Descia o helicóptero com muito estilo parecido ao do um elevador, melhor do que o de um camaleão.
Há 14 anos em que os helicópteros de guerra jamais bombardeavam as populações inocentes. Se um helicóptero fosse para aquela zona, seria o do Parque com certeza. E não iria aterrar no riacho onde ele estava, ele estimou. Ficou relaxado. Depois se juntaria a festa familiar visitada. Aliás, se fosse para ver as Grutas, ele seria o mestre de cerimónia – o ntsembe.
Luís esqueceu-se que o homem programa, mas Deus o desprograma. E a veracidade desta inteligência parecia aceite neste dia. Bastou o helicóptero aterrar, por razões não conhecidas, fomos impetuosamente impelidos para a esquina onde o Luís estava. Encontrámo-lo desprevenido, qual uma auditoria não avisada. Suas expectativas estavam ultrapassadas, seu sistema nervoso anestesiado. Voltou a criança. Foi preciso ser dito o que fazer pelo Tato, já diante da Peggy.
Peggy pertence a uma das famílias mais abastadas dos Estados Unidos da América. Ela permaneceu diante de Luís que só tinha cuecas e camisa como se permanece diante de um mergulho numa praia.


Capítulo 8
Embaraços folclores (Chissumbar)

Como africano, senti-me embaraçado, reconheço. Um homem não fica nu, nem meio nu diante de uma mulher. Os homens têm, até, o seu próprio espaço para tomar banho, separado do das mulheres nos cursos de água onde tradicionalmente se toma banho. A cultura de ir à praia e se juntar com mulheres no mergulho é algo que aprendemos dos brancos. Tal cultura, ainda circunscrita aos centros urbanos, está no processo de assimilação no cerne profundamente africano. Lembro-me que meus avôs sempre contavam-me, depois que eu procurasse lenha e acendesse o lume habitual nas horas de serão, que viam brancos tomarem banho homens e mulheres em praias, piscinas. Mas nunca contaram-me se, pelo menos um dia, eles próprios também imitaram o gesto dos brancos com as minhas avós nas bermas dos riachos por estas zonas do interior. O lugar de tomar banho dos avôs continua fortemente respeitado, evitado por todos e todas. Por exemplo, se ele estava a passear com uma das suas companheiras e sentiu a vontade de tomar banho, ela ficava a espera dele no caminho até que ele se despachasse para continuarem a viagem. Não se percebem as verdadeiras que tornam o lugar do banho deles sagrado. O que é contrário ao lugar do banho delas. O sagrado do lugar feminino se baseava no feitiço delas. Nenhum homem devia aproximar-se, surpreender ou espreitar uma mulher nua a tomar banho porque se fosse topado por ela, ou por uma delas no grupo e que dissesse à surpreendida nua, gerar-se-ia um grande feitiço. Este podia tomar formas diferentes: o infeliz homem podia ser obrigado a manter relações sexuais com ela ou tirar sua roupa para ela também lhe ver nu, podia perder a visão, ou mesmo morrer.
O mistério e segredo da invisibilidade do sexo, sobretudo o oposto, o do mais velho, não só terminava no banho. Prolongava-se para vários momentos da vida diária. Por exemplo, ao longo de uma caminhada, se se visse alguém a urinar, devia-se parar e esperar até que a pessoa termine a sua necessidade. Ia-se então olhando para o lado contrário enquanto se calculava o tempo de uma necessidade menor normal. Tudo isso era para se evitar ver nu a pessoa a urinar, sobretudo se fosse de sexo oposto ou mais velho em idade. Porque senão caia-se na consequência de vir a ser enfeitiçado, pelas mulheres. Para os homens, pouco se sabe de feitiço directo, mas que podem mostrar a sua iritação às suas esposas e estas actuarem.
Peggy é uma mulher forte e corajosa. Desafiou o Luís. Já no convívio familiar, inseriu naturalmente neste ambiente e nalguns momentos serviu de tradutor de Greg. Também assumi essa tarefa sempre que fosse necessário. Sobretudo da língua local para o inglês e vice-versa. Ainda nesse riacho, depois de uma breve conversa e de se ver as fotos que o senhor Greg trazia, notou-se a ausência de Baptista. Consultado o Luís sobre o paradeiro do irmão, soubemos que Baptista andava há algum tempo doente e não saía de casa. Inicialmente pensámos que tivesse malária, pois esta doença alugou a zona tropical sem ninguém se atrever em cobrar as despesas mensais e anuais de tantas mortes.
A malária é uma inclina velha e feiticeira da zona tropical. Uma velha é que é feiticeira aqui. A ela não se ousa contradizer. Dela se receiam as represálias. Daí que a malária reina sem muitas ciladas na África Subsaariana. As atenções do mundo, cada vez mais mal politizado, andam em torno da menina HIV/SIDA. Essa ainda é bonita, atractiva, tem dinheiro, emprega a muitos, daí toda a elegância dela.
A malária sabe ganhar a ocasião, vai matando a ritmo incalculável enquanto multiplicam-se Fundações, comissões, projectos contra a menina HIV.
Estranho! Dos estrangeiros que já vi, devido a verdadeira consciência que têm da malária, andam com pequenos kits pessoais de comprimidos contra esta doença. Cumprem a profilaxia enquanto distribuem o jeito nos bairros, com os seus moços aliados que buscam de farelo! O sexo (universal) e a morte (universal) cruzam-se no conceito de HIV/SIDA enquanto a malária não é sexual, mas simplesmente mata!
Baptista não tinha malária, mas sim dores de vista.

Capítulo 9
Baptista e o magnetismo no pensamento

Pensamentos predominantes tornam-se magnéticos independentemente da utilidade do que se pensa.
Milagre! Baptista, cujos irmãos afirmaram que passava dias e dias doente e que estava a piorar cada vez mais, depois de passar uma noite com dores horríveis, não resistiu a emoção da visita. Ainda falávamos do seu estado de saúde quando ele surpreendentemente despontou no capim alto. Baptista estava todo radiante e esforçava-se para conter as dores. Uma cura mágica foi temporariamente operada no subconsciente dele. O magnetismo actuou no pensamento dominante do Baptista permitindo-o ganhar coragem.
Enquanto saíamos do mato em direcção a pista, crianças e senhoras cercaram o helicóptero (rude e indiferente à comoção acolhedora). Greg, já habituado, reagia, como de sempre, sorridente, amigo, acolhedor, explicador. Estava a confirmar mais uma das suas paixões pelo bem estar do ser humano e pelo equilíbrio ecológico. Na nossa comitiva, ele era o que mais recentemente visitara a comunidade.
Greg estava mais preparado para explicar ao seu irmão Ken e sobrinho onde estávamos e com que gente. Nessa ambiência, Peggy, com um português fluente, não atrasou a envolver-se nas conversas espontâneas com os naturais.
Feitas as apresentações, dirigimo-nos à casa da grande família.
Acreditámos que poderíamos encontrar, rapidamente, outros membros da comunidade e saudá-los. O núcleo das relações sociais, por aqui, ainda se encontra na transição entre a comunidade e a família. Para os que herdaram o comportamento da cidade, a família é a unidade básica. Os outros ainda preferem a comunidade. E Greg percebe bem isso. Os seus estudos na Havard despertaram-no o universo que já trazia em si. Na sua relação social por aqui ele procura sempre trazer todos juntos e dar-lhes tempo e espaço para os seus hábitos.
Passados então alguns minutos de espera, só mais dois indivíduos adultos apareceram. Eram primos daquela família. É assim por estas bandas. Todos são de alguma forma parentes. A familiaridade nasce de mil maneiras por aqui: por ser membro da mesma comunidade, vizinhança, generodade, casamentos, apadrinhagens, mesma proveniência ou língua, etc.

Capítulo 10
Cerimónia de Ntsembe é indispensável

Sentámo-nos a espera da indicação do local em que seria feita a cerimónia que antecede a visita às Grutas. Íamos trocando algumas impressões com as crianças. Chegámos a saber que estes cidadãos percorrem quase vinte e sete quilómetros para chegar à vila sede a fim de comprar sal, roupa, cadernos para seus filhos (que por sua vez percorrem dez quilómetros diários para ir e voltar da escola), totalizando cerca de 54 quilómetros a pé ou de bicicleta se existir uma disponível na família ou na vizinhança. Ter uma bicicleta aqui é um prestígio.
Iniciámos a conversa sobre a cerimónia. A tradição não nos permite visitar as Grutas sem pedir permissão e acompanhamento dos espíritos.

Capítulo 11
Observe que para visitar as Grutas de Codzo é importante:

Açúcar, pão, refresco, cerveja, vinho, bolachas, cigarros ou tabaco em forma de rapé, uma moeda de qualquer valor. São artigos que os antepassados comiam. A moeda talvez fosse usada por eles para a compra de produtos que a técnica de produção local não podia fornecer. Refiro-me a refrescos, cerveja, vinho por exemplo.
Fósforos também eram usados pelos antepassados para acender cigarros, daí que fósforos não podem faltar. Tudo leva a crer que os nossos antepassados andavam sempre famintos como nós e tabagistas classificados. Para nos darem alguma bênção e boa companhia, para livrarem-nos dos nossos pecados diante de mistérios fabulosos e perigos iminentes precisam que os sirvamos aquilo de que mais gostavam: comer e fumar primeiro antes de tudo!
E quinhentos meticais também faziam parte das coisas que os antepassados comiam? Alguém do Comité de Gestão dos Recursos Naturais de Codzo (CGRNC) mencionou este valor.
Não! Esses quinhentos meticais eu não sei mesmo explicar para que servem. Há quem pense que vão para o CGRNC. Duvido.
O caminho está cheio de capim. Nas Grutas, está claro que nunca ninguém fez aí alguma limpeza. E não existe ainda nenhum sítio limpo fora das grutas onde os visitantes podem sentar-se e tomarem condignamente algum farnel que tiverem trazido. Daí a minha indagação: porquê pagar para um trabalho não feito? Talvez os quinhentos meticais sirvam para comprar o material de limpeza e transportar as pessoas para o trabalho!

Capítulo 12
Grutas Protestantes!

Peggy, trajada de calções, percorreu dois quilómetros até às Grutas a pé. Todo murado de capim por levantar com as mãos e braços à medida em que se avançava, era o caminho para as Grutas que também conduziu Ken e seu sobrinho, Tato, eu e muitas crianças e algumas senhoras até ao santuário sagrado!
Perguntei a Peggy a sensação que teve durante a caminhada até as Grutas, ginástica que normalmente exige calças, botas, e sobretudo coragem e determinação. Típico de quem passa pela rústica África Subsaariana, psicologicamente preparada para durezas, Peggy resumiu a caminha como parte do currículo da aventura.  

Capítulo 13
A minha arte de escrever é uma máquina fotográfica num mistério

Um grande especialista em descrição talvez fosse capaz de levar a totalidade daquele misterioso abrigo dos antepassados para a imaginação dos que já adquiriram o hábito de viajar através da leitura. As Grutas deram-me impressão de uma autêntica mina. Buracos de entradas e de saída. Poços um pouco por todo o interior. Alguns buracos vazios de água. Outros parecidos com aqueles em que as pedras foram transportadas para um outro lugar a fim de serem lavadas para se descobrir o ouro. Outros poços cheios de água profunda trazem a mente uma imagem de grandes fundações para uma série de prédios. Piscinas naturais correm pelas grandes fissuras com água à 19º C.
Se a natureza não extraiu sozinha seu minério num passado desconhecido, então alguns antepassados o fizeram com certeza. Eis a razão de se identificarem sempre com este lugar de que temos de lhes pedir permissão para entrar e sair sem os vermos. Ver um antepassado cria um pánico nos vivos. A ligação entre os vivos e os mortos, nesta zona, se faz através do ntsembe (culto tradicional que liga os com os antepassados). Depois de morrerem, os antepassados, sempre cientistas dedicados ou amantes da esperteza (apostados no poder da magia africana) transformavam-se em outras formas de vidas. Uns tornavam-se leões, cobras grandes (como giboias, mambas), pássaros, hipopótamos, leopardos entre outras formas animais ou naturais. Estes são os que depois se recolhiam para lugares como nas Grutas, na Serra da Gorongosa, nos rios, noutros sítios de mata bem fechada (ntsesseti), etc, evitando serem vistos pelos ainda vivos durante o dia todo.
É tsoca (azar) ver um espírito. Qualquer pessoa desobediente, que se metesse em um desses habitats místicos sem antes pedir licença através do ntsembe, podia ter muitas consequências negativas como seja ver algum espírito e perder alguma consciência até ser recuperado por súplicas, ntsembe, danças espirituais, etc ou ficava por lá definitivamente. Nada mais voltava ao mundo dos vivos para não contar o que viu lá. Assim, a vítima deixava uma lição prática e se impunha muito respeito pelo lugar sagrado, o repouso dos espíritos.
Uma pequena sorte se reservava aos individuos que desaparecessem (várias vezes a força dos próprios espíritos mais do que indisciplina) em águas de um curso natural. Alguns destes, podiam ficar meses e meses ou mesmo anos na água até que seus familiares convidassem um curandeiro capaz de chamar a pessoa das águas para fora através de danças específicas distendidas por muito tempo. Quando fosse assim, instalava-se no lugar por onde a pessoa desaparecu, uma batucada muito longa ao mesmo tempo que o curandeiro ia chamando a pessoa. Se os espíritos ficassem satisfeitos com a dança, podiam tirar a pessoa. O curandeiro iria depois se encarregar de tratar a pessoa ressurgida que vinha já bastante preparada para ser uma grande curandeira depois do tratamento, perfazendo assim uma das formas do surgimento de um tipo de curandeiros. Estranhamente, esta espécie de curandeiro vinha já instruída dos medicamentos que iria usar nos tratamentos vários.
Para outros antepassados, os seus espíritos eram depois trazidos, pela família, do cemitério para uma pequena casa no grande quintal familiar. Todos os novos habitats dos espíritos se tornaram assim em lugares misteriosos como o caso das Grutas, nas quais não se deve entrar sem antes pedir permissão através de uma cerimónia-a famosa ntsembe. Se as Grutas são resultados de movimentos de placas tectónicas ou de um fenómeno geológico, esta explicação garante o pão aos geólogos e não a mitologia. Para esta, as grutas são um verdadeiro fenómeno conhecido só pelos antepassados que mantém o lugar sempre sagrado.
A textura destas grutas escapa a minha descrição nestas páginas. É uma verdadeira fografia que só conseguiu captar a imagem da parte focalizada numa perspectiva. Outra parte da imagem escapa sempre, por mais que se fotografe de diferentes pontos de fuga.

Capítulo 14
O ntsembe transforma os espíritos em morcegos no ar condicionado? 

Vários tipos de morcegos se abrigam nestas grutas. Qual é a sua proveniência? São os espíritos transformados em morcegos depois de ntsembe? Ver morcegos de dia e fora de casa dá pouco medo. Só de noite. Assemelha-se a um mocho. Nenhum mocho deve voar por cima de uma casa de noite. Tráz feitiço. Será uma feiticeira a voar e levar maldição para aquela casa.
Paraíso de morcegos. Foto cedida pelo PNG.

Mas os morcegos nas grutas certamente não assustam, impressionam. Só podem estrumar por cima de alguém, se a pessoa for careca claro vai facilitar sair cabelo com certeza. Deve ser o ar sempre climatizado que atrai os espíritos tornados em morcegos. Os ‘aparelhos’ de ar condicionado ‘montados’ nas grutas são automáticos e muito resistentes. Degradam-se permanentemente à medida que as rochas vão cedendo às forças da natureza.


Capítulo 15
A temperatura da água das grutas

A água destas grutas aparenta ser muito limpa, apropriada para um mergulho só em dias de calor insuportável. Ken e o sobrinho não resistiram a tentação de mergulhar. Estranho! Mergulharam vestidos e calçados. Quem nunca sentiu atracção pelo exótico? Pelo particular? Pelo diferente? Esqueceram-se que alguns cursos naturais de água podem conter micróbios que causam bilharziose ainda que as águas estaja em constantes murmúrios.
A limpeza da água dessas grutas a torna potável. Pelo menos a olho nu. Como se testa a água potável? Não é pela limpeza que apresentar, depois, acrescida por frescura que acelera o exame laboratorial a favor da potabilidade? Acho a água só não é potável quando está turva. Então se espera até que os corpos sólidos agitados se vão concentrando na base, no fundo, e a água se vá tornando limpa, potável. Não importa se alguém está a tomar banho doutro lado, de onde a corrente de água sai, interessa que tal água chegue cá limpa e sem espumas de sabão (da beata de sabão que restou depois de se lavar a roupa) para entrar no pote de barro e ir ser bebida em casa. Quem não bebe esta água fresca em Codzo? Onde se consegue outra diferente desta água?

Capítulo 16
Pode se praticar alguma patifices nas grutas

Ken é extrovertido, adora partilhar, é socrático. Seu sobrinho pode ainda ser o contrário, esperando pela idade talvez. O tio conversou, subiu e desceu as rochas com jovens locais. Saltou nas rochas, entrou em outras águas menos profundas, molhou-se, aumentou sua frescura pois todo o interior está fresco. Só não conseguiu transpor uma das fissuras nas rochas. Aqui Ken aceitou que a idade não perdoa. Admitiu que tudo tem o seu tempo e que a lei da natureza deve ser respeitada.
Ken teve de ceder a derrota da idade, mas seus sobrinho subiu a vontade estas empenas. Fot o cedida pelo PNG.

O sobrinho de Greg está, sim, em boa forma física. Passou na prova máxima. Fez os exercícios que o seu tio Ken não conseguiu. Subiu protegido pelo seu anjo de guarda. Enquanto isso, Ken tornou-se professor de crianças que brincavam com um morcego vivo numa das ‘‘cadeiras’’. Alguns morcegos são venenosos e as suas mordeduras provocam uma doença mais letal que a malária.
Tive de interromper a conversa com o secretário do bairro para ir servir de tradutor de Ken.

Capítulo 17
Leve lanterna, coragem e espírito de aventura

Recomenda-se o uso de lanterna em alguns caminhos que levam às Grutas.
Por vezes, se exige coragem principalmente nas passagens sombrias com milhares de morcegos no tecto e nas paredes. Uma imagem assustadora surge quando se repara, sobretudo para o tecto natural, mais do que para as paredes das grutas. Fica-se com a sensação de que uma parte das grutas está a se desmoronar. Mas vai entrar e sair sem nada de mal, para tal, observe-se a tradição local – o ntsembe e companhia dos nativos.

Capítulo 18
Experimente um desafio indelével

Percorrer as grutas é como desafiar a morte. Fica-se com a sensação de que a qualquer momento tudo pode acontecer. É uma prova de bravura decidida e interessante. Entrar nessas grutas é uma das aventuras a não perder, um eco-turismo particular. Um elefante natural e de rocha cujo escultor apagou-se na memória oral ainda se encontra lá dentro. Das longas conversas que tive com a gente local, ninguém sequer se atreveu a tecer alguma lenda sobre o escultor do elefante na rocha. A vontade de se imortalizar existiu desde o surgimento do homem e o acompanha. Uns imortalizam-se em construções físicas como a rocha, as pinturas rupéstres, as pirâmides, as campas. Outros imortalizam-se psiquicamente construindo seus castelos, bem ou mal aceites, nas comunidades. Estes são do tipo Thales, Sócrates, Platão, Aristóteles, Jesus, Mahomé, Nietzche, Carls Marx, Samora Machel, Anibalzinho, Robert Mugabe, Bin Laden, Barack Obama, etc, etc.
Lá está o elefante de rocha, dentro das grutas, recusando a sepultura, mesmo pelo imperativo maciço do peso das rochas que se desintegraram do tecto e das paredes. O dono, aquele que a esculpio, ainda a se mantém imortal.
O que descartaria a possibilidade de uma rocha surpreender uma cabeça de um curioso? Não disse que isso aconteceu! Fantasmas existem na mente e têm o mau hábito de agredir a imaginação, não têm?


Capítulo 19
Experimente as famosas camadas da terra pela prática

Visitar as grutas é provar a tese segundo a qual a terra é feita por camadas: manto, crusta e núcleo.
Nenhum núcleo vi nas grutas, mas manto, sim, testemunhei. Passei por ele para depois experimentar a crusta. Esses são conceitos que os meus professores ensinaram-me na escola. Estudei-os no tempo em que os professores reinavam nas salas, quando eram o centro de tudo. Até as salas tinham lugares mais elevados onde ficava a carteira do professor, para ver bem a todos, bem perto do quadro. Batiam-nos por cada erro ou falha cometida. Duas longas bichas de alunos se formavam nas duas direcções, esquerda e direita, da sala e o professor ficava com a sua vara na porta e livro de chamadas. Cada um de nós devia responder judicialmente umas tantas perguntas de assuntos já tratados. Escapava a vara quem tivesse memorizado tudo e podia entrar para as aulas sem dívida.
Nessa altura, eu conhecia, de memória, cada conceito oralmente. Até os cantava sem trocar. Tal qual os tinha copiado do quadro. Escrever facilitava-me voltar a reler, mais facilitado do que as lições vivas dos avôs na hora de serão. Aliás, a passagem de uma cultura activa, toda assente na memória e criatividade, para a passiva, que regista tudo para reproduzir tal qual era canja.
Porém, o tempo passou. As classes e os conceitos hospedados coersivamente na memória caducaram. Por isso, peço que não condenem os meus professores. Se estes conceitos estiverem trocados aqui, é minha culpa, caducaram por falta de uso prático na vida diária. Então os endireitem, por favor. Não é assim o saber? Ninguém é dono individual do conhecimento, nem o professor. Parece que só a comunidade é que é detentora de todo o saber!

Capítulo  20
Em resumo, é uma aventura excitante?

Não hesite, ao escalar o PNG, reserve um dia para visitar as grutas de Khodzuè, as únicas, comovedoras! Terá oportunidade de avaliar como as grutas são parte integrante e orgulho das poucas comunidades a volda delas. Vai poder viver momentos culturalmente interessantes e fortes. Começam pela hospitalidade, à maneira local. Não se refere a água para beber nem quente para banho ou comida, ou casa de banho ou lugar para dormir. Poderá ser servido tudo isso se aceitar as condições locais. Refiro-me, porém, a alegria, ao calor folclore que toda a família lhe vai dispensar. O acompanhamento que lhe será feito até ao altar de ntsembe. A distenção da companhia até dentro das grutas, com breves explicações históricas e os donos sempre a frente a mostrar-lhe por onde entrar e sair. Poderá fazer tantas perguntas conforme a sua curiosidade. Poderá igualmente dar a sua opinião sobre o que gostaria de encontrar na sua próxima viagem, embora terá que recomendar coisas fazíveis com base em recursos locais. E acima de tudo, poderá experimentar, com seus olhos e coração, a sensação particular dentro destas grutas.
Quanto a mim, falta-me o poder de descrição para retratar pormenorizadamente a aventura que foi: visitar as grutas. Durante a visita, fiquei com a sensação de que lá fora não existe vida, árvores, arbustos, capim, animais, pessoas, etc. É uma das possibilidade de estar vivo dentro e debaixo das rochas. É aceitar uma sepultura e comprometer-se a ressuscitar só depois de algumas horas. É aceitar visitar o lugar dos mortos sem ficar por lá para sempre. Visitar as grutas é diminuir a distância entre os vivos e os mortos.


Capítulo  21
A vaidade de escrever nas rochas

Também se pode escrever nas paredes das grutas de Khodzuè. Porém, apenas altos dignitários podem deixar registado os seus nomes ai. É tal experiência ímpar. Os que passam por ai sentem-se orgulhosos pela aventura. E negando morrer acusado de não ter visitado este lugar idílico, nasce a ideia de se deixar registado o nome de cada dignitário que por ai passou. Para tal prática, sugerimos que se compre um livro e canetas para os que podem assinalar a sua presença atrevida nas grutas o poderem fazer com prazer sem manchar as rochas naturais. Deste modo, achámos que seria preservada a beleza original das grutas. Seria o único lugar onde a força destruidora do homem teria a piedade e prudência. Isso não diminuiria a fama nem importância do homem.
 O homem sempre encontra razões para estragar a natureza. Há sempre justificações para corromper o natural! A criatividade sempre anda a deriva quando a vontade é ávida. E a comunicação tem aí a sua disfarçada culpa. Todos querem comunicar. Mesmo quando a sua comunicação não tem mensagem, aliás tem conteúdo desorientador e improdutivo. Desculpe, caro leitor, pelo exagero. Pelo menos eu tenho o mau hábito de às vezes ficar emocionado e perder um pouco a cabeça. Sobretudo quando a gente racional mostra-se instável e louva a loucura.

Capítulo  22
Fim da viagem às Grutas

Depois de sair das Grutas, tivemos de esperar quase uma hora e meia pela chegada do helicóptero para nos levar de volta ao Chitengo. Estávamos com fome e cansados. Todo o nosso lanche tinha sido oferecido aos antepassados, aos meus avós residentes nas grutas. Por acaso não foi em vão. Acompanharam bem durante toda a viagem dentro.
            O sobrinho de Greg estava mais faminto. Não escondeu a sua derrota diante do fenómeno natural, esta lei biológica inadiável. Ken já não. Parecia mais resistente. Talvez porque era o mais velho do grupo. Sentia a obrigação moral de convencer-nos que já provou um pouco a dureza da impiedosa vida. Indiferente, foi entretendo seu sobrinho com conversas.
            Faltaram razões para me mostrar mais faminto do que aqueles bons americanos. O nosso farnel fora oferecido aos antepassados que se recolheram nas grutas e não os antepassados daqueles dois americanos ai. Ocupei o tempo a conversar com a nossa companhia local. Pude conhecer um pouco mais a família tradicionalmente responsável pelas cerimónias nas grutas.
Francisco Soares Chimbatata é o falecido pai dos três irmãos que depois de experimentarem o helicóptero foram connosco às grutas.

Capítulo  23
A família de 31 membros

Francisco Soares Chimbatata era simultaneamente mestre de cerimónias nas grutas e secretário do bairro Khodzuè. Apercebendo-se que estava quase a ir juntar-se aos seus antepassados, distribuiu os seus poderes pelos filhos.
Parte dos membros da família de 31 que se fizeram presentes num dos dias. Foto cedida pelo PNG.

Francisco tinha duas esposas irmãs. Casou-se primeiro com a mãe dos três irmãos presentes neste dia. A sua primeira. Esta esposa convidou a irmã mais velha e viúva, na circunstância, para ser a segunda mulher do seu esposo. É um hábito que vai desaparecendo com a nova geração. Admitia-se ao bom genro desposar-se com mais uma irmã da sua primeira esposa. Podia ser oferta dos sogros ao genro fiel, comportado. Premiado com mais uma esposa. Esta era uma forma de reter o generoso na mesma casa. Este passava a dever mais generosidade a duplicar. As relações de troca se intensificavam cada vez mais. O genro avassalava-se no máximo. Concentrava todas as suas atenções numa mesma família em pagamento dos dois bens em sua posse. Outra forma e a mais frequente verificava-se quando a primeira esposa tivesse dificuldades de fazer filhos O genro podia ser oferecido mais uma menina da mesma casa com que pudesse fazer crianças. A terceira forma acontece quando a primeira esposa atinge a menopausa enquanto o marido ainda ainda está no activo. Ela podia procurar na sua família uma irmão, sobrinha, neta, que viesse a ser segunda esposa do marido. O caso desta senhora que foi chamar sua irmã viúva é outro outro parênteses. Asim, o genro comportado levava em troca da sua grande colaboração em casa dos sogros, mais bens em oferta (a segunda esposa). Isso não é incesto, é simplesmente poligamia sororal, o contrário da poliandria fraternal ou adélfica praticada em Gorongosa. Com as duas esposas, Francisco teve 12 filhos. 8 com a primeira e 4 com a segunda. Dos 12 filhos, 4 faleceram.

Capítulo  24
Luís: mestre de cerimónias

Ao Luís Francisco Soares Chimbatata, o mais velho, coube a responsabilidade de orientar as cerimónias nas grutas, trabalho que faz com muito gosto. Ele, com mais de 36 anos de idade, tem duas esposas, 13 filhos, dos 7 rapazes e 6 raparigas.
Para sustentar a família, Luís é agricultor e apicultor há mais de 21 anos e tem 150 colmeias, para além de trabalhar na CMM (Companhia Madeireira de Moçambique) desde 2000.
A CMM paga ao Luís um salário mensal de 1800 meticais. Luís é o único sortudo daquela casa. Talvez por ser o mais velho. Foi abençoado! Ele, as vezes aconselha os irmãos  a recolher mel e vendê-lo para fazer face a vida, enquanto ele trabalha na CMM como pisteiro/sinaleiro. É aquele tipo de actividades que se as árvores reagissem não tardariam a se revoltar contra ele.

Capítulo  25
Jeremias: o secretário do bairro Khodzuè

Jeremias Francisco Soares Chimbatata é o representante do governo no bairro Khodzuè, em substituição do falecido pai. Foi a vontade manifestada por Francisco.
O jovem secretário disse –nos que seu bairro tem capacidade para acolher 450 casas. Actualmente tem quase 290. Muitas pessoas preferem ir viver perto da vila sede de Cheringoma-Inhaminga.
Habitam no bairro de Khodzuè cerca de 210 homens e quase 230 mulheres, de acordo com o senso mais recentemente realizado no bairro.
Jeremias tem 34 anos de idade, é polígamo. Com a primeira esposa tem 5 filhos, dos quais 4 são rapazes. A segunda esposa já deu ao grande chefe uma menina.
Para além das suas responsabilidades comunitárias, Jeremias dedica-se a actividades agrícolas e a criação de galinhas. Ele sonha, um dia poder comprar uma moageira de pelo menos 3 cilindros.
Quer ser negociante (comerciante). No seu bairro só tem uma moageira que ainda não começou a funcionar.
No bairro de Khodzuè habitam 500 pessoas com idades que variam de 0 a 18 anos, sendo 307 meninas. Casamentos pré-maturos são frequentes.
65 meticais são pagos por cada caso resolvido por Jeremias no seu bairro. O dinheiro é depois enviado para a sede da localidade para o pagamento de salários de 3 juízes comunitários locais.
Jeremias foi nomeado secretário do bairro em 2005, porém, só em 2009 vai começar a ser pago pelas actividade de secretário de bairro.

Capítulo  26
 Baptista: o aventureiro

Os poderes podem ser recebidos directa ou indirectamente. A transmissão de poderes para o Baptista Francisco Soares Chimbatata foi feita indirectamente por influência do seu pai: é chefe do policiamento comunitário e membro do Comité de Gestão dos Recursos naturais de Khodzuè.
Aos 29 anos de idade, Baptista tem duas esposas. Os três irmãos são polígamos. Baptista tem dois filhos com a sua primeira esposa.
Baptista, de 29 anos de idade e membro do CGRNC, do policiamento comunitário, etc. Foto cedida pelo PNG.

Os 3 irmãos e as respectivas esposas, vivem no mesmo quintal. A mãe deles também. São no total 31 pessoas na mesma casa.
O quintal está cheio de casas, árvores de frutas como maçaniqueiras, papaieiras, etc... Apesar de serem 31 pessoas, as actividades domésticas estão bem repartidas. As esposas têm que rotineiramente preparar refeições para todos. Cada esposa sabe perfeitamente a sua vez de entrar na cozinha. Cada uma só confecciona uma refeição porque a seguinte será preparada por outra esposa. Os esposos providenciam sempre o caril.
Deste modo, a família tornou-se muito coesa.

Capítulo  27
Bairro de Khodzuè
                                
Com 290 casas, Khodzuè não foi esquecido pelo governo distrital. A partir de 2006 Khodzuè já tem duas associações. Surgiram no âmbito do fundo de promoção de iniciativas locais. A associação de Khodzuè está virada para a produção de hortícolas e de fruteiras tais como cajueiros, laranjeiras, coração de boi.
A outra associação, a de Nhamatope, dedica-se apenas na produção de hortícolas, conforme o secretário do bairro.
As habitações no bairro são feitas de bambu, matope/lama e cobertas de capim. Muitos esperam cobrir as casas com chapas de zinco.
Os solos são muito férteis e produzem, entre outras culturas, o gergelim para a comercialização.

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