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No Acampamento do Chitengo
Durante quatro meses de pena, caçador furtivo relança uma antiga tradição musical
Introdução
No estilo de viver bastante materialista (que vem caracterizando as comunidades do interior de Sofala), orientado para a satisfação das necessidades básicas e diárias, muitas pessoas mais se preocupam com as actividades que lhes rendem bens materiais de uma forma imediata perdendo-se, deste feita, a exploração do seu potencial máximo em criatividades artísticas. Muita gente local agora não se importa em aprender muitos dos conhecimentos do passado, sobretudo, porque nesta era o que mais domina é responder às necessidade imediatas através de acções do tipo práticas agrícolas, pequenas criações, tecelagem de utensílios para vender como esteiras, cestos, cerâmica, caça furtiva, etc., e toda a actividade que possa resultar em vantagens imediatas para a satisfação das necessidade biológicas mais essenciais.
Pela falta de incentivos a estes saberes locais, os detentores destes conhecimentos geralmente não se apercebem da importância cultural, económico-turística desses saberes. Desse modo, os artistas locais pouco se dedicam a desenvolver as artes enveredando pelo caminho do que mais lhes resolve as preocupações vitais essenciais através de actividades descritas no parágrafo anterior esperando poderem obter alimentos, dinheiro, bens materiais indispensáveis para as suas famílias reservando, se possível, pouquíssimo tempo para desenvolver as artes que não lhes rendem ganhos nenhuns.
Capítulo 1
Nyakajambe encontra em Tomás Jeremias um amparo
Nascido em 1971, Tomás começou a tocar o Nyakajambe a partir de 1979 quando passou a viver com seu irmão Rui Jeremias, hoje falecido! Paz à alma de Rui Jeremias! Foram mais de seis meses para Tomás aprender a arte do Nyakajambe.
Na zona onde Tomás reside há mais de quinze anos já não existem pessoas que praticam este tipo de arte musical. O artista gostaria de passar este conhecimento para mais pessoas. Porém, assegura que nunca viu alguém interessado em aprender. Segundo o seu plano, era preciso que existissem mais pessoas para ele ensinar de maneira a constituir-se um grupo que perpétue esta arte de tocar Nyakajambe.
Tomás, apesar de não ser um empreendedor, é um detentor de um saber de grande valor cultural que entretém há muito nacionais e estrangeiros, como se evidenciou na sua actuação constante para turistas, visitantes e para o pessoal em serviço no acampamento de Chitengo durante os quatro meses de sua pena e pela gente que se reúne à sua volta quando ele toca os instrumentos musicais no seu bairro, e na banca de seu irmão.
Em cada performance no referido acampamento, os entretidos voluntariamente davam algum dinheiro ao Tomás. O artista diferenciava-se deste modo dos outros furtivos que não ousaram ostentar algum saber de grande valor social. Aliás, os outros furtivos também adoravam e se recreavam sempre que o Tomás estivesse a tocar os seus instrumentos musicais frequentemente ao final do dia.
Pela experiência de ter ganhado algo a partir desta arte, Tomás descobriu o valor dela e gostaria continuar a manter um vínculo muito forte com o Parque no sentido de ser sempre convidado para este lugar quando tem turistas, visitantes, hóspedes, jornalistas, para ele poder recreá-los.
Tomás Jeremias tocando Nyakajambe (na mão esquerda) e Ndhuzu (na mão direita). Foto Por DJMuala.
Capítulo 2
Da Pena, Caçador Furtivo Consegue Rendimentos para sua Esposa e Três Filhos
O dinheiro que Tomás ia conseguindo nos quatro meses que esteve a cumprir a sua pena no Chitengo, mandava-o para sua esposa de modo a ajudá-la nas despesas caseiras, tais como pagar a moagem quando fosse farinar os cereais, comprar vestuário para as crianças e para ela mesma, caril, entre outras despesas para a casa. Desta forma, embora o Tomás estivesse a cumprir uma pena por ter matado um boi-cavalo no Santuário do PNG, onde trabalhou durante nove meses na equipa de vedação, conseguia, através do seu saber particular ostentado, obter dinheiro para resolver algumas despesas pessoais e caseiras a partir da sua cadeia, privilégio que os outros furtivos não tiveram por não terem conseguido demonstrar algum saber de grande valor.
Capítulo 3
No Chitengo, revelação da arte de Tomás Jeremias
É importante sublinhar que a pena de Tomás no Chitengo não se traduzia em tocar o Nyakajambe. Para além das suas actividades normais de recluso no acampamento que se resumiam basicamente em rotinas ligadas à limpeza do pátio, cozinhar para alguns fiscais que passam refeições no Piquete, lavar e engomar alguma roupa, buscar lenha, água, lavar dentro de casa e nas casas de banho, às vezes Tomás tinha que ajudar a equipa da fiscalização para apagar fogos durante as queimadas descontroladas, assim como ir ao Santuário para ajudar a manter a área limpa à volta da vedação.
Foi pela coragem que teve em ultrapassar o fatídico dia a dia de um furtivo, que ele inverteu o seu cansaço por um vigor, demonstrando o seu talento. Pouco tempo depois da sua estadia no acampamento, descobriu-se que Tomás era artista talentoso e passou a gozar de um prestígio particular de tal maneira que era dispensado de algumas actividades para poder atender aos seus “fanáticos” clientes tocando para eles o Nyakajambe e o Ndhuzu muitas vezes ao cair do dia em frente do restaurante antigo.
Capítulo 4
. Nyakajambe toca-se em momentos especiais
Como qualquer música nestas comunidades, Tomás sempre tocou o Nyakajambe em momentos particulares quer no Chitengo quer em Nyamakaza, o Bairro onde vive. Em Nyamakaza geralmente toca na banca de Salazar Jeremias, um dos seus irmãos mais velhos. Salazar é fiscal do PNG, afecto ao Santuário e tem uma banca no Bairro onde vende bebidas alcoólicas incluindo cerveja e vinho, para além de outros produtos. Quando os clientes de seu irmão começam a embriagar-se, Tomás vai para a banca entretê-los com as suas músicas tocadas a partir de Nyakajambe e Ndhuzu.
Tomás Jeremias entretendo alunos na Mediateca em Chitengo a convite do Prof.Domingos. Foto por DJMuala.
Capítulo 5
São muitos os que se divertem com o Nyakajambe, mesmo em Nyamakaza
Geralmente, quando o Tomás toca muitas crianças cercam-no para apreciar a mestria e adoram. Talvez considere-se este um dado bastante importante para, bem organizado, o Tomás poder espalhar este seu conhecimento por algumas daquelas crianças que se mostrarem interessadas. Assim, esta arte passaria a ter mais praticantes e mais concorrentes para tocar e ganhar seu pão a partir da actividade recreativa.
No Chitengo, sempre que Tomás toca, muitos turistas, visitantes, trabalhadores dispensavam o ecrã gigante do famoso LG que regularmente o Departamento de Comunicações usa para projectar vídeos, filmes e outras mensagens sobre o Parque da Gorongosa, sua história, os mementos mais cruciais do Projecto de Restauração ora no terreno, etc, a favor da actuação ao vivo do artista local.
Capítulo 6
Crise da Arte e Sugestão
É crucial que estes saberes folclóricos sejam identificados, comecem a ser valorizados e se criem formas de estimular as pessoas detentoras de tais saberes artísticos dando-lhes espaço para demonstrarem, sempre que possível, as suas capacidades de performance por forma a que elas próprias se apercebam da importância e do valor dos seus saberes e consigam viver na base destes conhecimentos que existem localmente. A partir destes e de outros incentivos possíveis é possível estimular nas comunidades os saberes muitas vezes abandonados à extinção e substituídos por acções menos amigas da conservação como os abates desenfreados de árvores porque se crê, na massa local, que é só da agro-pecuária e da caça furtiva que se pode obter alimentos, caril e dinheiro nas famílias maioritariamente à volta do PNG.
Capítulo 7
Como o Artista local Tomás Jeremias pára no acampamento do Chitengo?
Tomás Jeremias matou um boi-cavalo no Santuário em Julho último, foi denunciado por outros caçadores furtivos, capturado pelo Fiscal Miguel e levado ao acampamento do PNG (Chitengo).
Seguindo a regra habitual da Fiscalização deste Parque, Tomás foi julgado no tribunal judicial do distrito da Gorongosa e condenado a uma pena de quatro meses.
Ora, geralmente as penas dos caçadores furtivos são cumpridas no acampamento de Chitengo e traduzidas em trabalhos manuais a favor do Parque. Os furtivos só são enviados para cumprir as penas nalguns Postos de Fiscalização quando se achar necessário e conveniente.
Depois da captura, julgamento e condenação, Tomás ficou completamente isolado da sua esposa, dos três filhos e do resto da sua família. Avolumaram-lhe então os pensamentos e saudades. Pensava no seu papel de pai e tio de muitos que dele esperam alguma ajuda, na sua esposa, Inês Alficha, que tinha que ficar sozinha quatro meses a cuidar das três crianças deles, Jeremias Tomás de sete anos e a estudar na 1ª classe, Tina Tomás de três anos e Sara Tomás de dois anos, etc.
Capítulo 8
Pequena Biografia de Tomás Jeremias
Tomás foi nascido em Gravata, no Posto Administrativo de Vunduzi, no regulado de Juchenge (?), na Gorongosa, filho de um caçador e de uma camponesa. Último a ser nascido num total de 8 irmãos e irmãs (cinco homens e três mulheres) da mesma mãe, Tomás não conheceu os seus pais porque só tinha dois anos quando seu pai, depois de uma discussão caseira com sua mãe, Jeremias decidiu esfaquear a sangue frio e mortalmente a esposa, Rainha Zuze. Depois, com consciência pesada de ter morto uma criatura humana e não simplesmente um animal do PNG (como era seu hábito) fuzilou-se sozinho e no mesmo dia com a sua arma Nguguda que usava para caça. Pelo menos Jeremias voluntariamente aceitou seguir o destino que deu à sua própria vítima. O assassino e suicida tinha ainda uma outra esposa com a qual teve três crianças totalizando 11 filhos.
Capítulo 9
Perfil Artístico de Tomás Jeremias
Nos primeiros anos, após o desaparecimento físico dos pais, Tomás passou até 1979 ao cuidado de uma irmã mais velha de nome Éda Jeremias. No mesmo ano, Tomás, com quase oito anos, passou a viver com o seu irmão Rui Jeremias. Foi a partir do convívio com este irmão que Tomás começou a aprender a tocar o Nyakajambe. Rui (também agricultor e caçador) era grande tocador deste instrumento. O Tomás ia imitando seu irmão e gradualmente acabou ganhando a paixão.
Já em 1979, Tomás conseguiu fazer o seu primeiro instrumento musical (primeiro Nyakajambe e Ndhuzu) quando ainda viviam em Gravata. Mas a guerra tornou-se bastante tensa e a população de Gravata vivia dividida: uma estava do lado da Frelimo e vivia em aldeias comunais enquanto a outra população estava na zona da Renamo e vivia em seus madembes (nos seus lugares de nascimento). Tomás e todos os seus irmãos estavam na zona controlada pela Frelimo, portanto, viviam em aldeias e continuava a tocar os seus instrumentos (Nyakajambe e Ndhuzu).
Capítulo 10
Tomás sai do Ambiente Familiar
Em 1987, o senhor Chacanza Alberto Roly, na altura chefe do Posto Administrativo de Vunduzi, pediu o menino Tomás e Rui admitiu. Chacanza passou a viver com o Tomás que o ajudava com os trabalhos de casa, tais como limpeza do quintal, roupa, utensílios domésticos, cozinhar, etc. Em troca destas actividades, Tomás recebia de Chacanza 1.500 Mt da antiga família, dinheiro que usava para comprar seu vestuário pessoal e ajudar seus irmãos. Tomás nunca teve a sorte de ir à escola, a sua escola sempre foi a arte de tocar os seus instrumentos, as actividades rotineiras aprendidas no ambiente familiar e em casa do patrão Chacanza.
Ainda em 1987, por causa de ataques constantes das tropas da Renamo, o chefe do Posto decidiu voltar para Beira de onde tinha vindo e levou consigo o Tomás. Tomás ficou com o seu patrão na Beira até 1992. Neste mesmo ano, 1992, Rui, com quem Tomás viveu nos últimos anos, accionou mortalmente uma mina.
Convém notar que durante todo este período até a ida para a Beira, Tomás nunca deixou de tocar os seus instrumentos e mesmo durante os anos que viveu na cidade ele sempre praticou a sua arte. Quando os seus irmãos o iam visitar levavam consigo uma parte do material que Tomás usava para fazer seus instrumentos musicais. Chacanza adorava muito a arte do Tomás.
Um dos primeiros momentos mais marcantes na história artística de Tomás foi quando Rufino Vicente, um jornalista, convidou o rapaz para fazer algumas gravações na Rádio Moçambique. A segunda fase mais marcante foi o convívio, as fotografias e filmagens feitas ao Tomás durante a performance da arte no Chitengo. Uma carga psicológica tão forte que ele próprio confessa jamais voltar ao Chitengo como furtivo, mas na busca de um emprego e um espaço para entreter os que gostam de Nyakajambe e Ndhuzu.
Capítulo 11
Tomás é moralmente obrigado a voltar ao ambiente familiar e ele aceita
No ano seguinte após a morte do irmão, 1993, Tomás teve que abandonar o serviço na Beira para se ir juntar aos restantes irmãos que já se encontravam a viver em Nhamakaza-Bué Maria (no regulado de Chicare) e tomar o cuidado das crianças órfãs.
Assim que o mano cuidou de Tomás, este retribuiu ao irmão pela mesma moeda cuidando os filhos do falecido. Não é assim a justiça natural que muitos se costumam fingir de esquecidos; que um bem se paga com um bem e um mal também com um mal? O sacrifício, esforço, coragem, determinação ou qualquer nome que os especialistas queiram atribuir vai dar no mesmo referente aqui entendido como o abandono de Tomás da cidade da Beira que o ensinou a falar algum português, do patrão que tanto o gostava, do dinheiro e do ambiente que o educava implicitamente, para ir assumir o cuidado dos filhos deixados pelo irmão morto por uma mina. Bom, esse foi o sacrifício que Tomás teve de aceitar. Tomás está ciente de que seu irmão foi ser um antigo combatente no reino dos céus!
Eram seis sobrinhos nascidos de uma das duas esposas que seu irmão deixou que viram no Tomás uma grande ajuda. A outra esposa do Rui nunca conseguiu dar luz a nenhuma criatura, mas continuou esposa aceitando que o marido casasse outra que produzisse frutos. Acontece em muitas culturas? E quando o marido morre, vítima das consequências da guerra civil, ela foi abrangida pelo socorrista que acabara de chegar para velar pela família!
Tomás fazia machambas como as cunhadas e a comida comia junto com elas e as crianças. Nessa altura ele ainda vivia no mesmo quintal com as cunhadas e as crianças. Para além da machamba Tomás caçava animais (acção herdada ou simplesmente cultural?) cuja carne uma parte servia para o consumo caseiro, outra vendia para obter dinheiro que satisfazia outras despesas da casa. Conseguiu manter três crianças do seu falecido irmão a estudar na escola de Bué Maria.
Capítulo 12
O Artista Apaixona-se pela Inês na Igreja Nova em Metuchira
Em 1994, Tomás começou a rezar na Igreja Nova Vida, sita em Metuchira. Já tinha conseguido dominar a emoção de perder um irmão e confirmado a sua responsabilidade exclusiva; olhar para a família como um pai. Era então a vez dos instintos menos pacientes, os sexuais. Lá na Igreja, pela primeira vez, ele viu e gostou da Inês. Usando os seus manos e manas, Tomás oficializou o namoro com a menina que mais tarde, em 1995, veio a ser sua esposa. Na altura, a Inês tinha 12 anos, quando decidiram casar-se, ela somente tinha completado 13 anos e Tomás tinha 24 anos (quase o dobro sendo ela ainda bastante menor para casar é ...folia ou cultura?).
Capítulo 13
O Casal e os três filhos
De 1995 a esta parte, o casal já tem três filhos cujos nomes estão descritos acima. Jeremias, filho mais velho de Tomás, é por enquanto a única criança que já mostra grande interesse em aprender a arte do pai. Talvez porque o pai já viu, durante a estadia que teve no Chitengo, que vale a pena saber tocar aqueles instrumentos e consiga motivar o seu filho com mais segurança.
Tomás e sua esposa, como a maioria dos residentes na zona tampão do PNG, dedicam-se a actividade agrícola da qual obtêm alimentos para a família e o excedente vendem. O casal tem duas machambas; uma para produzir mapira, milho, abôbora, pepino, mexoeira, tomate, etc, ou seja, virada para o sustento da família da qual os excedentes o casal vende. A segunda machamba é reservada para a produção de gergelim, cultura para a comercialização. Para além do trabalho da machamba, Tomás aprendeu a produzir esteiras que depois vende. Depois destas actividades tidas por ele como mais importantes porque respondem as necessidades de comer e vestir, Tomás assume como actividade de lazer tocar seus instrumentos musicais (Nyakajambe e Ndhuzu) que ele faz sozinho.
Capítulo 14
Comer e vender carne de caça é hábito velho a corrigir nos homens das comunidades à volta do PNG
Tomás deve ter herdado a actividade de caçar. Seu pai era grande caçador e detentor de uma arma pessoal com a qual mais tarde ele se caçou sozinho chegada a hora.
Num certo passado, a caça não era muito proibida como é actualmente, o que fez com que muitos homens das comunidades à volta do PNG incluíssem esta actividade na agenda cultural dos deveres básicos de um homem em oposição à mulher.
Esta tese aceita-se pelos escassos casos reportados de caçadas furtivas! As medidas proibitivas da caça antes eram menos estritas porque os animais eram abundantes e muitos residentes nem precisavam de entrar no Parque para caçar. Caçavam mesmo na zona tampão e até na floresta tropical da Serra sem precisar de entrar em contradições com as autoridades de conservação dentro do Parque.
Todavia, os tempos mudaram, também os animais diminuíram de números e só restaram no interior do Parque e as homens, acostumados de resolver parte das suas necessidades com a carne começaram a entrar com maior frequência para a zona do Parque para roubar o que uma vez lhes parecia garantido por Deus, só para beneficiar os residentes destas comunidades particulares.
A verdade foi traiçoeira; os tempos em que os animais eram propriedade particular destas comunidades foram relegados ao pretérito. No presente, procura-se descobrir tudo e globalizar. No caso vertente, descobre-se que só faz sentido se os animais pertencerem a todos cidadãos do mundo, que a diversidade do ecossistema da Gorongosa se aprove, à escala mundial, como um dos patrimónios mundiais, uma das áreas que o mundo inteiro deva prestar atenção e conservar.
Não é assim a regra? Uns descobrem, quer na natureza quer no laboratório, enquanto os outros esperam beneficiar-se das descobertas! Ninguém consciente se incomoda por isso; mesmo na machamba são poucos que sempre capinam, porém são muitos que comem, alguns dos quais nem mesmo conhecem de onde vem a comida que faz seus tecidos musculares. Aí o fenómeno furtivo que trouxe o artista Tomás Jeremias para cumprir a pena e desvendar uma página diferente, pela positiva, na história dele e da família dele.
Capítulo 15
Quem é Salazar Jeremias?
É um Fiscal do Parque Nacional da Gorongosa (PNG) afecto no Santuário e irmão mais velho de Tomás. Ele é um empreendedor como a maioria dos fiscais, aliás, como a maioria dos trabalhadores deste Parque. Todos de alguma forma empreendem conforme as suas capacidades económicas. Para a maioria dos fiscais, o seu salário e maguenes (dinheiro extra salário) são aplicados para comprar geradores, TV e filmes que vão projectando nos bairros em que vivem e ganham algum dinheiro. Outros como o Salazar constroem barracas onde vão vendendo bebidas e outros produtos de maior procura localmente.
Salazar começou a trabalhar no Parque desde princípios de 2005 cuja admissão foi facilitada por Paul Roche (um sul-africano) que na altura residia no acampamento de Chitengo e geriu o processo de construção da vedação do Santuário.
O próprio Tomás também trabalhou na equipa que vedou a área do Santuário por um período de 9 meses, cuja admissão foi facilitada por seu irmão Salazar. É sempre assim por aqui onde há muita procura, quando os recursos andam a deriva. Aquele que conseguir descobrir primeiro um poço habitualmente vai puxando seus familiares, amigos, vizinhos, conhecidos e afiliados, etc, para o poço. Chama os outros para se agregarem a ele e se refrescarem com a água que se procurava, beber, tomar banho, lavar e limpar toda a sarna se possível! Esta água que antes dificilmente se conseguia na medida satisfatória... E Salazar é daqui, seguiu a norma de conduta social para com seu irmão Tomás, apitou-o. Antes de ir trabalhar para o Santuário, Tomás praticava a agricultura e a caça furtiva, claro na clandestinidade, como a maioria dos residentes da zona tampão.
Capítulo 16
Tomás Jeremias Despediu-se de Chitengo
Tomás partiu de volta esta manhã para Nhamakaza depois de cumprir uma pena de quatro meses no acampamento de Chitengo. Ele foi cheio de emoção e ciente de que conseguiu, pelo tempo de sua estadia no Chitengo, traduzir o isolamento da sua família num momento mais forte na sua vida: ter sido convidado várias vezes pelo Parque para partilhar o seu conhecimento de grande valor turístico com turistas, jornalistas, visitantes e trabalhadores no acampamento.
Como qualquer pessoa que parte, mesmo ´para os céus e não os méus´, Tomás viveu nos últimos minutos uma mistura de emoções e realidades; deixar Chitengo e partir para casa. Um grande conflito de forças contraditórias transbordava do interior para o exterior usando os circuitos habituais: olhos, gestos faciais, boca, fraco controlo da situação, atitudes amorfas várias. Partir de regresso para seu ambiente familiar, para a reunião e alegria caseiras enchia-lhe de satisfação por um lado.
Por outro lado, deixar Chitengo, um ambiente que mais do que nunca soube acolhê-lo, valorizar o seu saber do qual recebeu muitas vezes alguma recompensa em dinheiro com qual ia cumprindo seu dever de marido, pai, tio, irmão, etc, portanto, ele deixa um ambiente que mais do que uma pena foi uma grande realização artística e fonte de rendimento.
Deixo o Parque com muita saudade. Durante o tempo que vivi aqui consegui perceber que afinal vale a pena saber algo e saber partilhar tal algo positivamente com os outros. Era minha vontade puder ter um emprego aqui. Trabalhando aqui eu poderia ter mais espaço para tocar meus instrumentos (Nyakajambe e Ndhuzu) para todas as pessoas que gostam deste tipo de música. Depois, já livre da minha pena, poderia ir sempre para casa velar pelas famílias que estão lá (Tomás Jeremias, 30 de Outubro de 2008)
Tomás Jeremias num das performances de despedida na mediateca de Chitengo a convite do prof. Domingos. Foto por DJMuala
Com Tomás foram capturados mais dois familiares: um seu irmão e um tio. Todos tiveram soltura no mesmo dia e deixaram Chitengo como muitos o deixam: momentos de conflitos entre ir-se e não se ir embora deixando. Deixar este pequeno mundo para trás sempre foi um assunto. Ainda que se tenha esperança de um dia incerto voltar-se a visitar, viver, ter Chitengo.
Nota final
O Nyakajambe é um arco musical que se distingue dos outros pelo facto de o som ser produzido por fricção de uma varinha sobre as incisões gravadas no arco de madeira. Este som é auxiliado pelos chocalhos postos na varinha Ndhuzu e pela boca do próprio tocador que, coloca sobre a corda, e serve de caixa de ressonância. Esta corda é feita de folha de palmeira amarrada nas pontas do arco, de modo a ficar bem esticada.
Este tipo de arco musical existe nas províncias de Maputo e Gaza com o nome de Chizambe ou Chizambiza. Em Inhambane chama-se Chivelane. Em Manica e em Sofala é conhecido por Chimazambe, Nhacazambe ou Nyakajambe e Nhacazeze.
O Nyakajambe é principalmente utilizado pelos pastores como forma de aliviar a sua solidão.
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